O copo de uísque que servia vinho
Na
casa de um grande apreciador de vinhos finos havia, em seu armário repleto de
taças igualmente finas, um introvertido copo de uísque chamado John. John acabou parando no meio daquelas
requintadas taças como um presente dado ao seu dono.
O dono de John, embora tenha recebido o presente
de bom grado, quase não fazia uso do On The Rocks, pois era contumaz
consumidor de vinhos da mais alta estirpe, o que não se aplicava a uísques. O copo foi colocado ao final da prateleira
reservada quase que exclusivamente para taças.
Os
amigos do proprietário de John se
reuniam aos finais de semana em sua residência. A mesa em torno da qual se
sentavam estava sempre adornada e bem equipada com saca-rolha, cortador de
lacre e outras parafernálias tipicamente enófilas. Vez ou outra, a casa ficava
cheia e todas as taças se esgotavam. Somente e tão somente nessas ocasiões, John era requisitado. E ao ser
utilizado, sempre servia vinhos.
Nessas circunstâncias, os amigos do dono de John sempre jogavam par ou ímpar para
saber quem utilizaria o famigerado copo, que era destinado, como é de se
imaginar, ao perdedor. E lá ia John,
ser utilizado em meio a resmungos e impropérios. Sendo sempre a última opção, John habitava tristonho a extremidade
esquerda da prateleira povoada por taças. Porém, havia um casal de amigos, duas
taças Borgonha chamadas Pierre e Marie, que sempre o incentivavam,
tendo-o adotado na mais alta estima:
– Vamos John! Alegre-se! Você vai pegar a manha de servir um bom vinho, de exaltar os seus segredos e nuances para os humanos. Acredite, treine com afinco e será como nós! – Falava com entusiasmo a senhora Marie.– Faça com que a bebida seja conduzida ao meio da língua John. Não ao fundo e nem à ponta entendeu? Ainda irão perceber o seu valor. – Pierre procurava animar John de forma mais objetiva.
John já
havia tentado todas as sugestões dadas por Pierre
e Marie, embora parecesse jamais
agradar, pois era sempre preterido pelos humanos.
Certo
dia, o dono de John recebeu um
telefonema de um amigo que há muito não via e que iria passar o final de semana
na cidade. O amigo foi então convidado para ir à sua casa. Aceitou o convite
prontamente, com a ressalva de que não era chegado a vinhos. Mas não recusaria
um bom uísque. O dono de John disse não ter nenhum uísque de prontidão, o que não seria
problema, pois seu amigo se prontificou a levar um excelente para
confraternização.
Na
data marcada, o anfitrião chamou seu amigo para se sentar na bela e adornada
mesa. Tomando seu vinho como era de costume, ofereceu à visita alguns petiscos
bastante saborosos. O amigo lhe mostrou então a garrafa de uísque envelhecido, tipo Premium.
Faltava apenas um bom copo para que fosse servido. O anfitrião se lembrou então
de John. Sempre relegado para o
segundo plano, havia chegado o momento de ser útil.
Ao ser
aberto o armário, a expectativa das taças, como de praxe, é que uma delas fosse
escolhida. Mas não naquele dia. Algo absolutamente atípico havia ocorrido. John havia sido a escolha. As taças
ficaram em polvorosa. Várias horas depois, John
é recolocado no armário. Curiosos, Pierre
e Marie se entreolham. Pierre então toma a dianteira e
pergunta:
– E então John, como foi hoje? O que me diz? Parece que finalmente perceberam o seu valor não é? Te falei que isso acabaria acontecendo! Que vinho você serviu?
– Foi maravilhoso! Finalmente eu pude sentir alegria ao servir uma bebida. E a satisfação do humano ao degusta-la. É a primeira vez que me sinto realmente útil. E a primeira vez que servir uma bebida foi para mim uma atividade prazerosa.
– E qual vinho serviu? – Insistiu Pierre.
– Não servi vinho. Servi Uísque. – Respondeu John esfuziante.
Um
burburinho ecoou por todo o armário. Nunca antes haviam servido algo diferente
de vinho naquela casa. A situação gerou incredulidade em meio às taças. Olharam
para John em tom inquisidor. A reação
gerou certo desconforto em John, mas
ele havia experienciado algo diferente. A sensação de servir uma bebida por
prazer e de conferir igual prazer ao humano degustador da bebida.
Ainda
em meio à balbúrdia no armário, John
foi novamente retirado pelo seu dono. As taças olharam atônitas. O Copo de Uísque foi novamente requisitado, em
curto espaço de tempo. O que estava acontecendo? Todas se perguntavam.
Passaram-se horas, dias, semanas, sem que John
fosse recolocado no armário. Boatos de que ele havia sido descartado
circulavam.
Pierre e Marie lamentavam a má sorte de John e se culpavam por não terem
conseguido ensiná-lo a servir um bom vinho, com decência suficiente para que
não fosse destruído. Atribuíram a felicidade de John, de semanas atrás, a um devaneio, uma fuga da realidade ao
perceber que não tinha utilidade como copo.
Passados
alguns meses, Pierre e Marie estavam na mesa, sendo usados,
como de costume, para servir vinhos para alguns convidados. Eis que se
apresenta um homem, um que não costumava frequentar aquela casa. Ele carregava
uma belíssima caixa que, ao ser posta sobre a mesa e aberta, revelou uma
garrafa de uísque, uma pinça para
gelo, um balde de vidro para gelo e um copo de uísque. Um copo que Pierre
e Marie conheciam perfeitamente: John. Ao vê-lo, ficaram surpresos e
muito contentes.
– Que alegria! Pensei que nunca mais o veríamos John! – Disse Marie radiante.– Conte-nos John o que aconteceu. – Solicitou Pierre.
– Meu antigo proprietário me deu de presente ao seu amigo. Eu fui levado por um estranho, com bastante receio eu admito. Mas confesso que a minha curiosidade e vontade de explorar novas possibilidades era ainda maior. Em meu novo lar, fui colocado em meio a outros copos iguais a mim. Diferente do que ocorria nesta casa, por lá eu era requisitado com frequência para servir uísque ao meu novo dono e aos seus amigos. Em meio aos demais copos, não me sentia deslocado. Estava servindo aquilo que fui feito para servir. Agradeço imensamente tudo o que fizeram por mim. Mas foi preciso que eu mesmo encontrasse o meu propósito como copo. Eu encontrei a perfeita consonância entre trabalho e prazer. Quando estava vazio, sentia que não havia propósito para minha existência. Ao ser usado para servir uma bebida incompatível comigo, percebi que estava seguindo o propósito das taças de vinho e não o meu. Apenas ao preencher o meu recipiente com uísque é que encontrei o meu propósito.
Muitos
seguem os ideais e os passos de outras pessoas sem se questionarem qual é o seu
propósito, qual líquido é mais adequado ao seu recipiente. Filhos não são
cópias estritas dos pais. Pais não são modeladores absolutos dos destinos dos
filhos.
É preciso observar e respeitar as individualidades. Seja qual for a
bebida contida em seu copo, lembre-se que você pode esvaziá-lo e enchê-lo
novamente. Não hesite em fazer isso caso necessário.
5 Recados
Que texto incrível !!
ResponderExcluirNos faz realmente refletir sobre nós e o outro. Parabéns
Muito Obrigado Juliana! Fico feliz que tenha gostado. =)
ExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirUm texto pujante, repleto de circunspecção e sensatez 👏👏👏🏆
ResponderExcluirRe
Simplesmente incrível!!! Amei!!!
ResponderExcluirE você, o que achou do post? Me conte aqui nos comentários!
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